A usucapião familiar é formalmente inconstitucional, por ausência de urgência e de conexão com o tema da medida provisória, além de inserir requisito inovador de caráter subjetivo, que é o abandono do lar.
RESUMO
Em 17 de junho de 2011 veio a lume a Lei Federal n. 12.424, decorrente da conversão da Medida Provisória n. 514, de 2010. Dentre várias alterações no Programa do Governo “Minha Casa, Minha Vida”, inseriu o artigo 1.240-A no Código Civil de 2002, dispositivo sobre o qual recai a elaboração do presente trabalho. É que ele inseriu uma nova modalidade de usucapião, com lapso temporal de 2 (dois) anos e requisitos inovadores, inclusive um destes de ordem subjetiva, qual seja, o abandono do lar. Tal elemento vai na contramão do escólio jurisprudencial e da doutrina moderna. Além disso, a forma como adveio ao ordenamento jurídico – medida provisória – torna sobremaneira discutível a configuração do pressuposto constitucional da urgência, porquanto além de ser mais razoável a devida tramitação do tema por meio de projeto de lei ordinária, não se vê nenhuma circunstância capaz de exigir o caráter extraordinário da matéria.
INTRODUÇÃO
O estudo tem por finalidade analisar a introdução de novo dispositivo ao Código Civil de 2002, ocasionada com publicação da Lei n. 12.424, de 2011, o qual instituiu nova modalidade de usucapião, com requisitos bem peculiares.
No primeiro capítulo, traçar-se-á o panorama legislativo dentro do qual o tema entrou em vigor. Em seguida, examinar-se-ão os aspectos constitucionais da Medida Provisória n. 514, de 2010, que foi convertida na mencionada lei ordinária, sobretudo sob o ponto de vista da sua (in)constitucionalidade. Um enfoque mais específico será dado sobre o pressuposto da urgência e também sobre a diversidade de temas dentro de um mesmo ato normativo.
Após, uma aferição aprofundada das finalidades da Presidência da República na reestruturação do “Programa Minha Casa, Minha Vida” também será realizada, a fim de se comprovar a existência de algum ponto em comum entre as matérias vertidas na MP n. 514/2010 e a nova espécie de usucapião criada.
Um estudo sobre o instituto da usucapião será efetuado, em especial sobre os seus requisitos, ocasião na qual se adentrará nos pressupostos específicos do artigo 1.240-A do Código Civil de 2002.
Analisar-se-á o retorno do requisito subjetivo do “abandono do lar”, bem como um exame histórico da evolução – tanto legislativa quanto jurisprudencial – por meio da qual atravessou a culpa no instante da separação conjugal.
Por fim, algumas possíveis consequências a respeito da nóvel modalidade de aquisição originária de propriedade será consignada, em atenção aos elementos necessários à sua configuração, como o acréscimo substancial de demandas judiciais, notadamente de ações cautelares de separação de corpos e de anulatórias de atos jurídicos, decorrentes do crescimento da demanda também perante os Cartórios de Registro de Imóveis, movida em sua maioria pela população de baixa renda beneficiada que possua apenas um imóvel em comum, na metragem prevista.
1. Histórico legislativo.
Em 1º de dezembro de 2010, a Presidenta da República Dilma Rousseff enviou ao Congresso Nacional a Medida Provisória (MP) n. 514, de 2010, visando modificar substancialmente a Lei n. 11.977/2009 – que instituiu o “Programa Minha Casa, Minha Vida” (PMCMV) –, regularizar os assentos fundiários localizados em áreas urbanas, e alterar diversas legislações extravagantes, dentre as quais as Leis n. 10.188/2001, 6.015/1973 (lei dos registros públicos), 6.766/1979 (parcelamento do solo urbano) e 4.591/64 (condomínios edilícios).
Conforme consulta ao sítio da Presidência da República, a MP foi inicialmente apresentada contendo 9 (nove) artigos. Perceba-se que, até então, nenhuma referência expressa ou formal havia em relação à alteração da Lei n. 10.406/2002, pelo que se afirma que o texto original da MP sequer previa modificação do Código Civil de 2002.
É possível constatar, de igual maneira, que, em 2 de março de 2011, a MP teve sua vigência prorrogada pelo Presidente do Congresso Nacional, Senador José Sarney, por mais 60 (sessenta) dias.
Ocorre que, ainda na Câmara dos Deputados, a MP teve alteração parcial em seu teor, com a inclusão de dispositivo inserindo o artigo 1.240-A no Código Civil, o que originou o Projeto de Lei de Conversão (PLV) n. 10, de 2011, cujo relator foi o Deputado André Vargas (PT/PR). No Senado, o relator foi o Senador Waldemir Moka (PMDB/MS).
Eis a redação do artigo 1.240-A:
Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
O PLV foi aprovado na Câmara na sessão plenária do dia 27 de abril de 2011 e, em seguida, aprovado no Senado Federal em 10 de maio do mesmo ano, pelo que aguardou a sanção presidencial desde do dia 13 de maio.
E, finalmente, o PLV n. 10/2011, além de ter a redação do § 2º do artigo 1.240-A do Código Civil vetado pela Presidência da República, recebeu a sanção em 16 de junho de 2011, razão por que foi convertido na Lei n. 12.424, de 2011, contendo 13 (treze) artigos.
A propósito, o preceptivo vetado tinha a seguinte redação:
"§ 2º No registro do título do direito previsto no caput, sendo o autor da ação judicialmente considerado hipossuficiente, sobre os emolumentos do registrador não incidirão e nem serão acrescidos a quaisquer títulos taxas, custas e contribuições para o Estado ou Distrito Federal, carteira de previdência, fundo de custeio de atos gratuitos, fundos especiais do Tribunal de Justiça, bem como de associação de classe, criados ou que venham a ser criados sob qualquer título ou denominação".
Eis a razão do veto: "Os dispositivos violam o pacto federativo ao interferirem na competência tributária dos Estados, extrapolando o disposto no § 2º do art. 236 da Constituição".
2. Dos requisitos da relevância e urgência da Medida Provisória n. 514/2010.
As alterações proporcionadas pela edição da MP n. 514/2011, responsáveis por modificar substancialmente duas leis ordinárias em especial (Lei n. 11.977/09 – PMCMV – e a Lei n. 6.015/73 – LRP) e por incluir um dispositivo de grande relevo no Código Civil, porquanto instituiu-se nova modalidade de usucapião, levantam dúvidas sobre a “atividade legislativa” da Presidência da República para a aprovação do tema por meio de medida provisória.
É sabido que, para a adoção desse excepcional ato normativo, dois pressupostos constitucionais se fazem presentes: a relevância e a urgência.
A propósito, Moraes[1] leciona que:
A medida provisória enquanto espécie normativa definitiva e acabada, apesar de seu caráter de temporariedade, estará sujeita ao controle de constitucionalidade, como todas as demais leis e atos normativos. O controle jurisdicional das medidas provisórias é possível, tanto em relação à disciplina dada a matéria tratada pela mesma, quanto em relação aos próprios limites materiais e aos requisitos de relevância e urgência.
In casu, até se considera que o assunto tenha grande relevância, notadamente porque pretende resolver diversas questões fundiárias afetas à população de baixa renda, o que é de real importância.
No entanto, enfocando a discussão somente sob o ponto de vista da inconstitucionalidade formal da inserção realizada no Código Civil, é possível concluir que há ausência do requisito da urgência.
Ora, a criação de uma nova modalidade de usucapião, por meio de medida provisória, além de restringir a imprescindível discussão a respeito do novo instituto e as suas consequências, foi incluída em ato normativo que versava sobre outro assunto – o PMCMV.
Aliás, a nova usucapião, da maneira como foi instituída, não tem nenhuma referência com o programa governamental, destinado à construção de moradias nas zonas rural e urbana. E é induvidoso que a medida provisória composta de temas diversos, por si só, é eivada de inconstitucionalidade.
E, se não bastasse isso, fazia-se necessário o debate do tema, sob a forma de projeto de lei, nas duas Casas Legislativas, em tempo adequado, com a realização de diversos estudos, e jamais da maneira como aconteceu, por meio do açodado e excepcional procedimento da medida provisória.
Sobre os requisitos da relevância e da urgência, asseveram Paulo e Alexandrino[2]:
Matéria objeto de grande controvérsia na doutrina e, mesmo na jurisprudência, diz respeito à competência para aferição dos pressupostos constitucionais de urgência e relevância, justificadores da edição de medida provisória. Questiona-se se essa competência estaria no âmbito da esfera de discricionariedade do Presidente da República, ou se, diversamente, poderiam os poderes Legislativo e Judiciário fiscalizar a presença de tais pressupostos.
A questão foi objeto de grande discussão também no âmbito do STF, tendo a Corte firmado orientação de que a aferição dos pressupostos de relevância e urgência têm caráter político, ficando sua apreciação, em princípio, por conta do Chefe do Executivo (no momento da adoção da medida) e do Poder Legislativo (no momento da apreciação da medida).
O ponto é realmente polêmico, uma vez que não se pode inviabilizar o Poder Executivo da edição de atos normativos, tampouco é possível permitir que haja atuação excessiva e constante por parte da Presidência da República (ou dos Governadores, no caso dos Estados-membros que possuem no corpo das suas Constituições a previsão da medida provisória).
O que é de fundamental importância, frise-se, é o fato de que a discussão de alguma matéria legislativa apresenta-se mais examinado e debatido por meio do rito procedimental das leis ordinárias do que pela via das medidas provisórias.
Logo, nada impediria, nem de longe, que algum Parlamentar governista apresentasse a nova usucapião sob a forma de projeto de lei. Tal dispositivo, em isolado, deveria ter tramitar ordinariamente, separando-se de toda matéria restante.
Em um exame da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, infere-se que o Poder Judiciário pode ater-se aos requisitos da relevância e da urgência, apesar de a competência para a sua configuração ser discricionária e possuir caráter político.
São as palavras do Ministro Celso de Mello[3]:
Os pressupostos da urgência e da relevância, embora conceitos jurídicos indeterminados e fluidos, mesmo expondo-se, inicialmente, à avaliação discricionária do Presidente da República, estão sujeitos, ainda que excepcionalmente, ao controle do Poder Judiciário, porque compõem a própria estrutura constitucional que disciplina as medidas provisórias, qualificando-se como requisitos legitimadores e juridicamente condicionantes do exercício, pelo Chefe do Poder Executivo, da competência normativa primária que lhe foi outorgada, extraordinariamente, pela Constituição da República.
Com efeito, é evidente que o controle pelo Poder Judiciário, embora muito abstrato, tendo em vista se tratar os requisitos da relevância e da urgência de conceitos jurídicos indeterminados, dificulta um julgamento objetivo. Não raras vezes o Excelso Pretório, quando instado a decidir, entendeu não haver ofensa aos requisitos constitucionais de edição da medida provisória.
Portanto, convém registrar que a aferição dos requisitos da relevância e da urgência é susceptível de ser realizada pelo Supremo Tribunal, a quem caberá decidir pela declaração de inconstitucionalidade do ato normativo por vício formal. No entanto, a ilegitimidade da medida provisória somente será declarada por meio de evidência objetiva da falta de urgência ou de relevância.
Assim, ao menos no que toca à instituição da nova modalidade de usucapião, que nada urgente tem, fica evidente a eiva da inconstitucionalidade que recai sobre o ato normativo.
Ora, que prejuízo haveria para a população se o novo instituto fosse discutido da forma ordinária, por meio de projeto de lei? O que o faz tão extraordinário que só por meio de medida provisória pudesse ser criado? Será que a criação de um modo de aquisição originário de propriedade era realmente urgente ou quiçá necessário, visto que para tanto poderiam existir outros instrumentos, como a habitação ou o uso?
Fica flagrante, por via de consequência, a falta do requisito constitucional da urgência no presente caso concreto.
3. A Política Habitacional e a criação de nova modalidade de Usucapião.
Da análise de todo o teor da MP n. 514/2010, convertida na Lei n. 12.424/2011, percebe-se que a finalidade da iniciativa presidencial, formalizada por meio do ato normativo primário e excepcional, foi regularizar diversas questões fundiárias.
A finalidade do “Programa Minha Casa, Minha Vida” (PMCMV), conforme consta do artigo 1º da Lei n. 11.977/2009, com redação dada pela Lei n. 12.424/2011, é “criar mecanismos de incentivo à produção e à aquisição de novas unidades habitacionais ou requalificação de imóveis urbanos e produção ou reforma de habitações rurais, para famílias com renda mensal de até R$ 4.650,00”.
Ele compreende, ainda, os seguintes subprogramas: a) Programa Nacional de Habitação Urbana (PNHU); e b) Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR).
De outro norte, o objetivo do PNHU, na linha do artigo 4º da Lei n. 11.977/2009, com redação dada pela Lei n. 12.424/2011, é o de “promover a produção ou aquisição de novas unidades habitacionais ou a requalificação de imóveis urbanos”.
Já o PNHR tem por finalidade:
“subsidiar a produção ou a reforma de imóveis aos agricultores familiares e trabalhadores rurais, por intermédio de operações de repasse de recursos do orçamento geral da União ou de financiamento habitacional com recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS)”.
Perceba-se, dessa forma, que não há nenhuma ligação com o programa habitacional a inclusão da nova espécie de usucapião.
No ponto, vale transcrever os ensinamentos de Venosa[4]:
A posse prolongada da coisa pode conduzir à aquisição da propriedade, se presentes determinados requisitos estabelecidos em lei. Em termos mais concretos, denomina-se usucapião o modo de aquisição da propriedade mediante a posse suficientemente prolongada sob determinadas condições. […] Usucapio deriva de capere (tomar) e de usus (uso). Tomar pelo uso. Seu significado original era de posse. A Lei das XII Tábuas estabeleceu que quem possuísse por dois anos um imóvel ou por um ano um móvel tornar-se-ia proprietário. Era modalidade de aquisição do ius civile, portanto apenas destinada aos cidadãos romanos.
Para Diniz[5], “a usucapião é o modo de aquisição da propriedade e de outros direitos reais (usufruto, uso, habitação) pela posse prolongada da coisa com a observância dos requisitos legais. É uma aquisição do domínio pela posse prolongada”.
Eis o teor do nóvel artigo 1.240-A do Código Civil:
Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.§ 1 O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.§ 2 (VETADO).
A análise aprofundada do dispositivo permite a seguinte subdivisão: lapso aquisitivo bienal; localização do imóvel em zona urbana; limitação da área em 250 m²; abandono do lar; e única propriedade em conjunto com o ex-cônjuge ou o ex-convivente.
Infere-se que são, pelo menos, cinco características, de maneira que o abandono do lar é, sem sombra de dúvidas, a mais polêmica e que apresentará maior dificuldade de comprovação.
Sob outro vértice, o prazo da prescrição aquisitiva de dois anos também será responsável por grandes contendas judiciais, haja vista que, por questão de obviedade, quanto menor o prazo maior a possibilidade de sua configuração.
Nesse sentido, oportuna a observação de Simão[6]:
A lei presume, no meu sentir de maneira equivocada, que quando o imóvel é familiar deve o prejudicado pela posse exclusiva do outro cônjuge ou companheiro tomar medidas mais rápidas, esquecendo-se que o fim da conjugalidade envolve questões emocionais e afetivas que impedem, muitas vezes, rápida tomada de decisão. É o luto pelo fim do relacionamento.
Aliás, repita-se, qual a razão para, de inopino, criar-se outra maneira de aquisição originária de propriedade? E sobretudo nesse interregno? Acredita-se que, mormente nesse período de desenlace conjugal, a melhor medida seria talvez a concessão do uso ou da habitação para um dos cônjuges ou companheiros, mas não, ao revés, declarar-se contra aquele que “abandonou” o lar a perda da propriedade imobiliária.
Acerca dos pressupostos gerais da usucapião, menciona Gonçalves[7]:
Os pressupostos da usucapião são: coisa hábil (res habilis) ou suscetível de usucapião, posse (possessio), decurso do tempo (tempus), justo título (titulus) e boa-fé (fides). Os três primeiros são indispensáveis e exigidos em todas as espécies de usucapião. O justo título e a boa-fé somente são reclamados na usucapião ordinária.
Atente-se que a usucapião familiar não apenas trouxe requisitos diversos de todas as outras espécies de aquisição originária de propriedade, como ainda afastou a exigência do “justo título”, pressuposto tradicional presente na maioria delas.
Cumpre registrar, por oportuno, que, mais uma vez, uma discussão bem feita nas Casas Legislativas evitaria diversos entraves e, em especial, poderia uniformizar as diversas espécies de usucapião.
Sobre a criação, pela Lei n. 12.424/2011, de novos requisitos para outra espécie de usucapião, vale citar a observação de Simão[8], citando Marcos Ehrhardt Junior:
Primeiro, bem lembra o Prof. Marcos Ehrhardt Junior que 'parece não haver nenhuma preocupação quanto à simplificação dos procedimentos processuais para reconhecimento da usucapião. Todas as iniciativas recentes voltadas ao tema visam apenas à criação de novas formas para o exercício de tais direitos, criando uma miríade de requisitos distintos que apenas dificulta a aplicação e conhecimento do instituto'. Efetivamente, todos os problemas procedimentais da usucapião passam longe da preocupação legislativa. O excesso de burocracia e de custos inerentes à usucapião acaba afastando as partes de se valer desta forma de regularização fundiária.
O registro da propriedade imobiliária também pode trazer diversos problemas, como o aumento das ações anulatórias de atos jurídicos e uma “guerra” quase infindável contra o preenchimento do requisito do abandono do lar.
Logo, fácil concluir pela ausência do requisito constitucional da urgência, em especial porque não se vê, nem de longe, uma situação tão iminente a ponto de se impor o rito procedimental da medida provisória. Ao contrário. Se a tramitação se desse pela via ordinária do projeto de lei, aliada a uma verdadeira discussão, provavelmente várias inconsistências seriam evitadas.
4. A indesejável análise do requisito “abandono do lar”: um grande retrocesso.
Dentre as várias questões polêmicas – e aparentemente mais negativas do que positivas – trazidas com a instituição da usucapião do art. 1.240-A do Código Civil, a que apresenta maior relevo é o provável retorno do requisito subjetivo consistente no “abandono do lar”.
Outro elemento subjetivo, pelo qual as partes se digladiavam em Juízo, era a comprovação da culpa por parte de um dos cônjuges.
Historicamente, o Estado sempre teve a postura nítida de, a qualquer preço, manter o laço matrimonial. Assim, quem nada tinha contra o par, quem não conseguiria identificar uma causa culposa praticada pelo cônjuge, não teria o direito de postular a separação.
E, se não bastasse isso, somente o “cônjuge inocente” poderia requerer a desconstituição do casamento, pelo que o “culpado”, mesmo “culpado”, não teria legitimidade para tal postulação.
No ponto, destaca Venosa[9]:
No regime originário do Código Civil de 1916, o desquite litigioso devia caber em uma das causas especificadas no artigo 317: “adultério, tentativa de morte, sevícias ou injúria grave, abandono voluntário do lar conjugal por mais de dois anos”. A jurisprudência do passado procurou alargar esse aparente numerus clausus, entendendo, por exemplo, que o abandono do lar conjugal por menos de dois anos poderia constituir injúria grave, expandindo esse conceito de injúria.
Percebe-se, de antemão, a necessária configuração de uma das causas devidamente arroladas no revogado preceptivo para o “desquite” litigioso. Era o incessante interesse do Estado na manutenção da família a todo custo.
A Lei do Divórcio (Lei n. 6.515, de 1977) trouxe, no artigo 5º, o seguinte texto: “a separação pode ser pedida por um só dos cônjuges quando imputar ao outro conduta desonrosa ou qualquer ato que importe em grave violação dos deveres do casamento e torne insuportável a vida em comum”.
Sobre o dispositivo, Venosa[0] advertiu que “nunca os magistrados tiveram tanta dificuldade em definir a conduta desonrosa ou a grave violação de deveres do casamento, aspectos de absoluto senso comum”.
Tal conclusão bem reflete a complexidade do tema e a ingerência indevida do Estado nas questões particulares do casal.
A doutrina menciona que o Código Civil de 2002, em vez de evoluir nesse contexto, afastando-se aferir questões subjetivas, incorreu em retrocesso ao aprovar o artigo 1.572: “Qualquer dos cônjuges poderá propor a ação de separação judicial, imputando ao outro qualquer ato que importe grave violação dos deveres do casamento e torne insuportável a vida em comum”.
Uma simples análise histórica apresenta, por si só, a rigidez do legislador no trato com as questões relativas ao Direito de Família. Em virtude disso, coube aos Tribunais ajustar as situações decorrentes da evolução natural da sociedade aos textos legais, preenchendo lacunas e conceitos jurídicos indeterminados.
Colhe-se da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça[1]:
SEPARAÇÃO JUDICIAL. PEDIDO INTENTADO COM BASE NA CULPA EXCLUSIVA DO CÔNJUGE MULHER. DECISÃO QUE ACOLHE A PRETENSÃO EM FACE DA INSUPORTABILIDADE DA VIDA EM COMUM, INDEPENDENTEMENTE DA VERIFICAÇÃO DA CULPA EM RELAÇÃO A AMBOS OS LITIGANTES. ADMISSIBILIDADE.
– A despeito de o pedido inicial atribuir culpa exclusiva à ré e de inexistir reconvenção, ainda que não comprovada tal culpabilidade, é possível ao Julgador levar em consideração outros fatos que tornem evidente a insustentabilidade da vida em comum e, diante disso, decretar a separação judicial do casal.
– Hipótese em que da decretação da separação judicial não surtem conseqüências jurídicas relevantes.
Embargos de divergência conhecidos, mas rejeitados.
Ora, a prova do abandono do lar, marco inicial que terá relevância ímpar na comprovação do prazo de dois anos exigido pela Lei, poderá trazer infindáveis discussões judiciais. Não se parece razoável que a criação de aspecto tão subjetivo na configuração do dies a quo da usucapião seja positivo.
Nesse sentido é o voto proferido por Sérgio Chaves, citado por Nagib Slaibi Filho[2], em aresto do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
O exame da culpa deve ser evitado sempre que possível. Quando termina o amor, é dramático o exame da relação havida pois, em regra, cuida-se apenas da causa imediata da ruptura, desconsiderando-se que o rompimento é resultado de uma sucessão de acontecimentos e desencontros próprios do convívio diuturno, em meio também às próprias dificuldades pessoais de cada um. Se o varão alega abandono do lar pela mulher e esta disse que foi expulsa do lar, além de ser ofendida pelo marido, descabe questionar a culpa (7ª Câmara Cível, rel. Des. Sérgio Chaves, julgado em 6-3-2002).
Na mesma linha, impossível não transcrever as palavras de Zanellato[3]:
Olvidou-se o legislador de que a perquirição da causa da separação está perdendo prestígio. O fim do casamento vem sendo chancelado independentemente da indicação de um responsável pelo insucesso da relação, seja porque é difícil atribuir a apenas um dos cônjuges a responsabilidade pelo fim do vínculo afetivo, seja porque é absolutamente indevida a intromissão do Estado na intimidade da vida das pessoas. Não são normas jurídicas que irão determinar a manutenção do vínculo conjugal entre duas pessoas.
Com efeito, em decisão recente também do Tribunal da Cidadania, a Ministra Nancy Andrighi[4] bem sintetizou o foco pelo qual as relações afetivas devem se valer: “A boa-fé objetiva deve guiar as relações familiares, como um manancial criador de deveres jurídicos de cunho preponderantemente ético e coerente”.
Eis as palavras de Luiz Edson Fachin[5]:
A ingerência determinada pela lei na vida dos cônjuges, obrigando um a revelar a intimidade do outro para que imponha o juiz a pecha de culpado ao réu, é visivelmente inconstitucional. Não tem sentido averiguar a culpa, com motivação de ordem íntima, psíquica, quando a conduta pode ser apenas sintoma do fim.
E parece ser exatamente essa odiosa dificuldade, arduamente afastada com a evolução jurisprudencial, que um dispositivo, inserto em medida provisória, no açodamento da aprovação das modificações trazidas pelo plano governamental, fez ressurgir ao Direito Civil.
5. As consequências advindas com a criação da nova espécie de Usucapião: as ações cautelares de separação de corpos e os registros imobiliários.
Um pouco das consequências trazidas ao ordenamento jurídico com o artigo 1.240-A do Código Civil já foi exposto. No entanto, a prática forense permite conjecturar outras situações que muito provavelmente serão uma constante nos fóruns pelo Brasil afora.
E, como não poderia deixar de ser, a comprovação do requisito mais subjetivo da usucapião, o “abandono do lar”, implicará diversas condutas tanto por parte do cônjuge que está afastando-se do imóvel, quanto pelo outro que ali continuou a residir.
A primeira delas, talvez a mais evidente, será a proliferação das medidas cautelares de separação de corpos ou das cautelares inominadas. Apenas para clarear, cita-se o artigo 1.562 do Código Civil de 2002:
Art. 1.562. Antes de mover a ação de nulidade do casamento, a de anulação, a de separação judicial, a de divórcio direto ou a de dissolução de união estável, poderá requerer a parte, comprovando sua necessidade, a separação de corpos, que será concedida pelo juiz com a possível brevidade.
Ora, supondo a situação do marido que sai de casa e deixa a mulher ali vivendo, ele, para não perder o direito de propriedade sobre o imóvel, deverá produzir prova no sentido de que não se trata de abandono do lar, mas sim de separação já decidida pelo casal.
Interessante a noção trazida por Diniz[6]:
O juiz concederá, com a brevidade possível, a separação de corpos, que poderá ser requerida pela parte que, antes de mover a ação de nulidade ou de anulabilidade do casamento, de separação judicial, de divórcio direto ou de dissolução da união estável, comprovar a necessidade de afastar o outro do lar, por ser insuportável a convivência, em razão, por exemplo, de agressões ou de má-conduta. Daí ser comum a separação de corpos cumulada com pedido de retirada do lar do cônjuge agressivo. O processo de invalidação matrimonial ou de separação judicial poderá iniciar-se pelo pedido de separação de corpos ajuizado pelo autor, legalizando a saída do cônjuge do lar (original sem grifos).
Destarte, acaso preenchidos os requisitos afetos ao imóvel (zona urbana, metragem e única propriedade em conjunto), depois do período de dois anos da “separação de fato”, terá direito a ex-esposa, por exemplo, de ingressar na justiça pretendendo a propriedade exclusiva do bem.
Logo, ou o ex-marido comprova que não houve abandono, ou seja, que a decisão de sair decorreu da separação, ou perderá a sua quota-parte sobre a propriedade do bem. Nesse caso, a ação cautelar de separação de corpos servirá para demonstrar que houve o rompimento do vínculo matrimonial.
E, de outra banda, como a ex-esposa ou ex-convivente fará a prova do marco inicial do abandono? É sabido da fragilidade, em demandas desse jaez, da prova testemunhal, dada a afeição que as testemunhas, normalmente vizinhas, têm por uma das partes.
Concordando com tal exposição, assenta Simão[7]:
Trata-se de usucapião exclusivamente a ser utilizado entre cônjuge ou companheiro contra seu antigo consorte que abandonou o lar e não se opôs pelo período de 2 anos a posse mansa e pacífica do outro consorte. Havendo abandono do lar, a usucapião pode ocorrer após o lapso de 2 anos. As dificuldades são evidentes. O prazo é exíguo demais para a elaboração do luto elo fim da conjugalidade. Por que um prazo inferior àqueles das demais modalidades constitucionais de usucapião?
Perceba-se o grau de dificuldade na configuração da presente modalidade de usucapião.
Sob outro vértice, não será apenas o Poder Judiciário que sofrerá com ações tendentes a afastar ou a comprovar o abandono do lar pelo casal.
Além do desnecessário retorno das discussões afetivas, como não existe “usucapião extrajudicial”, de maneira que depois da eventual confirmação do direito real de propriedade à parte autora, deverá haver o registro do imóvel, com exclusividade para o ex-cônjuge abandonado, no Cartório de Registro de Imóveis, conforme preconiza o artigo 1.227 do Código Civil.
Vale acrescentar, de igual maneira, que os cartórios de registro de imóveis também terão a demanda elevada. Tal circunstância, que a priori tenderia a ser positiva, mostra-se em verdade como mais um ônus a ser suportado, principalmente se se considerar que, nas condições necessárias à configuração desta espécie de usucapião, a maioria esmagadora dos litigantes usufruirá do benefício da justiça gratuita e da gratuidade nas averbações imobiliárias.
CONCLUSÃO
Do ponto de vista formal, a instituição da “usucapião familiar” contém inafastável eiva de inconstitucionalidade, por dois motivos: o assunto contido no nóvel artigo 1.240-A do Código Civil de 2002 não possui nenhuma ligação com as modificações do Programa “Minha Casa, Minha Vida”.
Além disso, fica clara a ausência do pressuposto constitucional da urgência, haja vista que absolutamente nenhum prejuízo haveria se o assunto – “usucapião familiar” – tivesse a tramitação por meio do projeto de lei ordinária, com a realização de estudos e a devida discussão entre os Parlamentares sobre as consequências de outra forma de aquisição originária de propriedade, com requisitos tão peculiares.
Acredita-se que, mormente no período de desenlace conjugal, a melhor medida seria talvez a concessão do uso ou da habitação para um dos cônjuges ou companheiros, mas não, ao revés, declarar-se contra aquele que “abandonou” o lar a perda da propriedade imobiliária, em caráter de nítida punição.
A prova do abandono do lar, marco inicial que terá relevância ímpar na comprovação do prazo de dois anos exigido pela Lei, poderá trazer infindáveis discussões judiciais. Basta uma análise histórica do instituto da comprovação da culpa na separação conjugal para se concluir que a criação de aspecto tão subjetivo na configuração do dies a quo da usucapião familiar seja positivo.
O registro da propriedade imobiliária também pode trazer diversos problemas, como o aumento das ações anulatórias de atos jurídicos – decorrentes de equivocadas averbações – e uma “guerra” quase infindável contra o preenchimento do requisito do abandono do lar.
Percebe-se que ou o ex-marido comprova que não houve abandono, ou seja, que a decisão de sair decorreu da separação, ou perderá a sua quota-parte sobre a propriedade do bem. Nesse caso, a ação cautelar de separação de corpos servirá para demonstrar que houve o rompimento do vínculo matrimonial.
Ao final, vale consignar que a inserção do artigo 1.240-A no Código Civil de 2002, da maneira como foi feita e especialmente sobre a matéria nela constante, apresenta mais prejuízos do que benefícios à população.
GALLON, Leandro Ambros. Reflexões sobre a inconstitucional usucapião instituída com as alterações do Programa “Minha Casa, Minha Vida”. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3157, 22 fev. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/21136>. Acesso em: 24 fev. 2012.